segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Artigo Acadêmico: O amor e o sedutor estético: Mímesis e Semiose.

Soren Kierkegaard

O AMOR E O SEDUTOR ESTÉTICO: MÍMESIS E SEMIOSE. [1]

Thiago Rodrigues de Souza.


Tomando como objeto de estudo os campos de atuação e de interpretação do sedutor estético, Johannes, personagem central da obra literário-filosófica de Søren Kierkegaard que se intitula: “O Diário de um Sedutor”, podemos encontrar um ser dotado de uma capacidade extremamente evoluída para desvelar, por entre caminhos quiméricos e tortuosos, o que de interessante e poético existe na vida. A análise que aqui se segue pretende dentro de um exame semiótico, peirceano, e da mímesis, platônica, dar uma nova roupagem ao amor romântico seguindo o viés de interpretação do sedutor estético em oposição ao sedutor vulgar. Trata-se de tentar absorver, nas malhas da análise, traços quase imperceptíveis dentro da interpretação do sedutor estético sob a formatação corrente do amor romântico.
Para tanto, faz-se necessário, um breve olhar panorâmico sobre a semiótica peirceana, num contexto fenomenológico. Entendemos por fenômeno, palavra derivada do grego Phaneron, tudo aquilo, qualquer coisa, que aparece à percepção e à mente. A Semiótica (do grego semeiotiké) é a ciência geral dos signos e da semiose que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação, e está intrinsecamente ligada à fenomenologia. Para o cientista, lógico, matemático e filósofo norte-americano, Charles Sanders Peirce (1839-1914), o homem significa tudo que o cerca numa concepção triádica, há três elementos formais e universais em todos os fenômenos que se apresentam à percepção e à mente. Num nível de generalização máxima, esses elementos foram nomeados de primeiridade, secundidade e terceiridade.
A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade. A secundidade está ligada às idéias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, conflito, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. Segundo Peirce, a forma mais simples de terceiridade manifesta-se no signo, pois ele: é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligado a um segundo, (aquilo que o signo representa ou se refere), e um terceiro, (o efeito que ele irá provocar em um possível intérprete).
No entanto essa ramificação conceitual triádica, sistematizada por Peirce, é só a ponta do aiceberg de um conglomerado de raizes que vão se bifurcando numa relação em cadeia, recíproca, para dar conta das multiplas polaridades do signo em seu viés semiótico. A apreciação de Lúcia Santaella ( 2005: 11) sobre a complexidade que envolve o tema de que estamos tratando é bastante instrutiva:
“a fenomenologia perciana fornece as bases para uma semiótica anti-racionalista, antiverbalista e radicalmente original, visto que nos permite pensar também como signos, ou melhor, como quase-signos, fenômenos rebeldes, imprecisos, vagamente determinado, manifestanto ambiquidade e incerteza, ou ainda fenômenos irrepetíveis na sua singularidade.”

Segundo Santaella, qualquer coisa pode ser analisada semioticamente, desde um suspiro, uma música, uma ópera, uma pintura num museu, um teorema, um livro, um sentimento, uma paixão, uma poesía, incluido as percepções que temos desses fenômenos no contexto sígnico. Essa potencialidade é, de fato, o resultado da ligação muito íntima da semiótica peirceana com a fenomenologia.
Seguindo os trilhos da análise central do trabalho e voltando ao exame, do sedutor Kierkegaardiano, podemos perceber que semioticamente a natureza poética do sedutor estético engendra uma linha tênue só dele, não é nem suficientemente rica, nem suficientemente pobre para distinguir entre poesia e a realidade. Como se seus passos intelectualmente precisos e esteticamente calculados deslizassem conscientemente nas entrelinhas de um dos poemas de Lord Byron. O tom poético capaz de mudar, interpretativamente, os augúrios enfadonhos do cotidiano, era fornecido em excesso por ele próprio, cujo gozo, ele ia colher na situação poética da realidade, e que retomava sob a forma de reflexão estética. O próprio Kierkegaard (1979: 147) o descreve:
“Primeiro ele gozava pessoalmente a estética, depois gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; (...) Tinha a constante necessidade, no primeiro caso, da realidade como ocasião, como elemento; no segundo caso a realidade ficava imersa na poesia.”


Kierkegaard ao descrever o contexto ambiental do sedutor estético faz alusão a um mundo que subsiste, em um plano último, detrás do mundo que vivemos; à relação recíproca entre aquele e o mundo real assemelha-se à que existe entre duas cenas num teatro ou numa ópera, uma cena por detrás da outra. Através de uma leve cortina, pode-se distinguir um mundo mais leve, mais etéreo, de uma outra qualidade que a do mundo real. Muitos daqueles que reverberam em carne e osso pelo mundo real não lhe pertencem, mais sim ao paralelo. Segundo Kierkegaard, se perder pouco a pouco nas malhas que ofuscam o cotidiano, ou seja, quase desaparecer da realidade, pode ser saudável ou mórbido.
No caso do sedutor Kierkegaardiano é mórbido. O sedutor estético não pertencia à realidade e, no entanto, tinha muito a ver com ela. Passava a jogar, friamente, sempre acima da realidade, e mesmo quando mais se lhe entregava, estava longe dela. Contudo, não era o bem que o afastava da realidade, nem tão pouco o mal, segundo o autor havia nele um pouco de exacerbatio cerebre (exaltação da mente), neste sentido, portanto, essa exaltação estética da mente suprimia a deficiência da realidade cotidiana quanto a um estimulo suficientemente forte para saciar a sua mente sedenta de continua contemplação estética.
A realidade, portanto, lhe oferecia fragmentos soltos de estímulos e sempre de modo fugidio e efêmero. Logo que a realidade perdia sua importância como estimulante, ficava desarmado, e nisso consistia o mal que o habitava. Ele não sucumbia ao peso da realidade, para ele, suportar esse peso era uma fraqueza, no entanto, ele era demasiado forte; mas tal fortitude era a sua doença. Tinha consciência disso, mesmo no momento do estimulo, e o mal estava nessa consciência. Seus dotes intelectuais e suas exigências estéticas, no entanto, eram os instrumentos que norteavam essa consciência.
O diário do sedutor segue por entre as cartas que ele escreveu para o objeto central de sua sedução, a jovem Cordélia, cuja historia preenche a maior parte do diário, e as narrativas pessoais que desvendam as reais motivações e intenções estéticas e miméticas de cada ação dele e de cada carta. Para se compreender essa primeira marca de distinção entre as cartas do esteta e as páginas correntes do seu diário, os conceitos de objeto imediato e objeto dinâmico do signo podem nos ajudar.
Que todas as cartas e todas as páginas correntes do diário e o próprio diário são signos deve ser uma constatação evidente. São realmente hipoícones que representam seus objetos por semelhança. Há uma distinção que Peirce estabeleceu para o objeto que pode nos ajudar a compreender melhor as relações do fundamento do signo com seu respectivo objeto. Essa distinção é a do objeto imediato e a do objeto dinâmico. O modo como o signo representa, indica, se assemelha, sugere, evoca, aquilo a que ele se refere é o objeto imediato, no nosso caso, as cartas para Cordélia, as folhas correntes do diário e o próprio diário do sedutor.
O conteúdo sobre o que o signo trata o contexto, o sentido, a significação do signo é o objeto dinâmico, no nosso caso, o objeto dinâmico do diário, das páginas correntes do diário, é o sedutor estético em si, e as reais intenções dele para com Cordélia, para com o outro e para com a realidade. No caso das cartas para Cordélia, o objeto dinâmico é o amor romântico, polido pelos imperativos estéticos, que eram descritos sempre poeticamente para Cordélia, que por sua vez interpretava de forma sígnica aquelas cartas que exalavam sinceridade, vigor, intelectualidade, estética e amor romântico.
Decerto há um hiato entre o objeto imediato e o dinâmico no caso do diário do sedutor, e em especial às cartas para Cordélia. O tempero exótico que davam às cartas, do sedutor, o poder de armas letais; era justamente a mímesis de que se servia para se guiar num jogo estético, lúdico e quimérico; em que o objeto de seus estímulos constantes, Cordélia, seguia vendada por entre os labirintos tortuosos de uma mente corruptivelmente estética.
Tomando como objeto de análise semiótica o próprio sedutor Kierkegaardiano, poderemos engendrar o seguinte exame: O objeto imediato é o próprio sedutor estético, ele possui um objeto dinâmico: o seu Eu, que permanece latente diante de suas relações interpessoais; o mesmo sedutor estético cria uma representação desse objeto dinâmico para o outro, através de máscaras comportamentais, disfarces sociais, alegorias emocionais e até mesmo simulacros morais. O outro por sua vez interpreta, com seus critérios, a representação do esteta frente ao objeto dinâmico do mesmo, ou seja, frente ao Eu do esteta que está camuflado por sua representação sígnica. É nesse jogo mimético e entrópico que se fundam os alicerces de todas as relações interpessoais do diário de um sedutor.
Para um melhor posicionamento analítico, a saber, na relação da mímesis dentro do contexto sígnico; tomemos a mímesis platônica, seguindo o mesmo viés, conceitual, de investigação, não em seu todo estrutural, mas apenas extraindo o fragmento da mímesis-práxis, para análise. Traçando um paralelo análogo entre este e a semiótica peirceana, ou seja, a mímesis da ação dentro do contexto sígnico proposto no problema central. O autor Marcelo Marques (2006: 353), em sua análise do livro O Sofista de Platão, vai especificamente tratar do exame da mímesis da ação:
“Quando o Estrangeiro diz que o produtor, enquanto imitador, não pode ser diferenciado de seu produto, porque ele usa seu corpo como instrumento, para poder tornar-se semelhante a um outro indivíduo, ele está, na verdade, propondo o problema da imitação como ação (mímesis – práxis).”

Para o autor Marcelo Marques, o exame da mímesis da ação, no Sofista, trata da mímesis de atores e rapsodos, mas também da mímesis dos atores-agentes que desenvolvem papéis enganadores, seja na vida pública, seja em círculos restritos. A produção de uma falsa imagem de si mesmo, por parte do sofista, como alguém que sabe tudo, foi o ponto de partida da investigação platônica, no Sofista, dentro da (mímesis – práxis).
Por esse viés mimético o sedutor estético Kierkegaardiano norteia suas ações e molda seus signos. Como um ser naturalmente quimérico nos jogos semióticos que regem suas ações em prol à estética. O esteta é inclinado à produção consciente de imagens falsas e simulacros, com o intuito, consciente, de esconder o seu Eu do outro. Ele utiliza-se da mímesis pra esculpir nos seus signos os efeitos que foram cuidadosamente estudados, para que os estímulos estéticos fossem degustados por ele em pequenas e prolongadas doses.
Em última análise, no presente trabalho, trataremos de tentar absorver, nas malhas da investigação semiótica, traços quase imperceptíveis dentro da interpretação do sedutor estético em oposição ao sedutor vulgar. Com efeito, todas as imagens criadas pelo sedutor vulgar só sobrevivem na medida em que o ser humano real, ou seja, o objeto dinâmico que existe por trás dessas imagens, consegue manter o apelo ao objeto de sua sedução. Basta o ser existente, objeto das imagens, envelhecer, gastar-se um pouco para que esse apelo também comece a fenecer. Os signos da sedução vulgar dependem da existência dos seres de que os signos são os registros. Desaparecendo os seres de que os signos registram, esses signos também desaparecem. Esses signos precisam da existência do objeto dinâmico para existir.
Nesse caso, quando há a ausência do sedutor vulgar, perante o objeto de sua sedução, ou no desaparecimento da sua vida, ininterruptamente sugada pelos índices, eles próprios, os índices também desaparecem. Essa é a fragilidade de que são feitos os índices, do mesmo modo que a fumaça só existe quando existir o fogo. Acabando o fogo, cessa-se a fumaça. Acabando o que o signo, índice, representa, acaba-se também o próprio índice. Depois de muito pouco tempo o máximo que pode restar desses índices, criados pelo sedutor vulgar, é a nostalgia. E conforme o tempo passar, esses índices não serão nada mais do que flash’s nostálgicos, apagados da memória do objeto de sua fracassada sedução.
Um sedutor estético, um artista, ao contrario, eclipsa sua vida na produção de uma obra. Entrega sua vida e sua lucidez a essa produção. Muitas vezes, vive uma existência obscura, longe das praças públicas e das vitrines, submergido no constante estudo estético para realização de sua obra. Por isso mesmo, sua vida transcende o contato físico, e continua nessa obra. Diferente dos índices criados pelo sedutor vulgar que dependem da carne e osso do objeto dinâmico, ou seja, do próprio sedutor vulgar.
Para o esteta, o sedutor vulgar está enredado nas malhas da realidade cotidiana, está com os olhos vendados para os fenômenos que se apresentam por detrás das cortinas miméticas, estremece-se e fica exausto tão só termina de saciar os imperativos da carne. Para esse sedutor o interesse no seu objeto de sedução é estéril e morre tão somente quando acaba à troca de fluidos do frenesi lascivo. O sedutor estético, por outro lado, é filho de um outro mundo. O Diário mostra, com efeito, que o esteta desejava, por vezes, algo de totalmente arbitrário, uma saudação, por exemplo, e por preço algum queria obter mais do que essa saudação, por ser essa saudação àquilo que a pessoa em questão possuía de mais belo. Sob a égide dos seus dotes espirituais e estéticos, sabia tentar uma jovem e, com maestria, atraí-la a si, sem se preocupar com possuí-la, no sentido carnal do termo.
Os signos icônicos da sedução do esteta, criam vida própria, desprendem-se dele, ou seja, perduram na ausência do objeto dinâmico, ganhando uma longevidade muito mais durável do que poderia imaginar o seu objeto de sedução. O fascínio artístico do esteta invadiu a mente de Cordélia, deixando lá, por tempo indeterminado, sua marca, sua insígnia, sua impressão digital. Por essa razão, a arte do esteta não produz nostalgia. Sua realidade não está presa a um índice, não está presa ao carnal, mas sim acorrentada ao espírito do objeto de sua sedução. O Sedutor estético, Johannes, identifica com muito ímpeto e convicção o sedutor vulgar, e logo depois se descreve da seguinte forma:
“Aquele que não sabe fazer o certo a uma donzela até que ela perca tudo o mais de vista, aquele que não sabe, à medida do seu desejo, (...) esse homem é e será sempre um desajeitado; não invejo o seu prazer. Um tal homem é e sempre será um inábil, um sedutor vulgar, termos que de modo algum se podem aplicar a mim. Eu sou um esteta, um erótico, que apreendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo a opinião muito pessoal de que uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela ileso, é uma obra-prima.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KIERKEGAARD, Søren Aabye. Diário de um Sedutor. Tradução de Carlos Grifo. São. Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).

MARQUES, Marcelo P. Platão, pensador da diferença. Uma leitura do Sofista. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Editada por C. Hartshome, P. Weiss e A. Burks. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-1958, 8 volumes.
_____. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

PLATÂO – A República, Trad. Pietro Nassetti, Ed. Martin Claret Ltda – Rua Alegrete, 62 – Bairro Sumaré – São Paulo – SP, 2006.

SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo, Brasiliense, 1983.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Thomson, 2005.


[1] Texto apresentado no seminário “A Fenomenologia e as Ciências Humanas”.

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