terça-feira, 16 de agosto de 2011

A ESTÉTICA NO SUBLIME KANTIANO E NO GROTESCO.



            A categoria estética do belo e a qualidade simétrica que o caracteriza, desde as origens históricas da arte e das discussões na estética, ganhou altares e alcançou importância sobrenatural na Grécia antiga. O belo também ganhou toda claridade e magnitude na época das luzes, no seio apolíneo do iluminismo e do período do Renascimento. Entretanto, o ímpeto expansivo da arte em suas manobras evasivas aos grilhões dos conceitos e as expansivas investigações estéticas acharam outro caminho, não menos importante, que os caminhos simétricos do belo; eles encontraram como fonte de inspiração e investigação, seja na natureza, seja na arte: o assimétrico e o disforme, o incomensurável e o horroroso, o transcendente e o abismal, que se personificam em dois conceitos fundamentais para as discussões estéticas, a saber: o conceito do sublime e a categoria do grotesco.           
Com base na teoria kantiana do sentimento do sublime, podemos encontrar uma forma singular de sistematizar este conceito que vem sendo investigado e dissecado ao longo das conjecturas filosóficas, ocupando lugar de destaque no epicentro da estética do século XVIII. Vale fazer, neste contexto, uma menção a Edmund Burke, filósofo e político anglo-irlandês (1729 – 1797) que foi um dos principais pensadores a contribuir, antes de Kant, com a investigação do sublime. Em sua obra Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do Sublime e do Belo (1757), Burke formata o sublime como conceito, num movimento que contrasta com a ênfase dada pelo academicismo à claridade, precisão, simetria e a ordem. É no cerne desta discussão que Kant lança sua teoria do sentimento do sublime associando-o à grandiosidade incomensurável e elevação em fenômenos da própria natureza.
Kant em sua obra Crítica da faculdade de julgar (1790) mostra que o sublime, assim como o belo, deve poder ser objeto de um assentimento universal, ou seja, o sentimento do sublime não pode ser associado às sensações empíricas puramente particulares. Como acentua Kant nesta passagem:

poder-se-ia, com direito, tomar um juízo como regra para qualquer um; porque o princípio, na verdade admitido só subjetivamente, mas contudo como subjetivo-universal (uma ideia necessária para qualquer um), poderia, no que concerne à unanimidade de julgantes diversos, identicamente a um princípio objetivo, exigir assentimento universal, contanto que apenas se estivesse seguro de ter feito a subsunção correta. (Kant, 1993. p 111)       


 Nesta passagem, o sublime encontra uma linha tênue que o aproxima do juízo do belo, peculiaridade passível de ser notada pelo fato de ambos “agradarem por si mesmos”. Ambos pressupõem um juízo reflexionante, ou seja, um juízo particular que tem a pretensão de ser, contudo, universal; um juízo que se justifica a pretensão de uma validade universal e necessária, mas fundada apenas no sentimento do sujeito que julga. Como Kant torna patente neste fragmento:

aquele que na mera reflexão sobre a forma de um objeto, sem relação alguma com um conceito, experimenta prazer, pretende com razão, ainda que este juízo seja juízo empírico e individual, obter a aprovação de cada um, porque a base deste prazer se encontra na condição universal, ainda que subjetiva, dos juízos reflexionantes, que é, a saber: a concordância final de um objeto (seja produto da natureza ou da arte) com a relação das faculdades de conhecer entre si, exigidas para o conhecimento empírico (a imaginação e o entendimento). (Kant apud OLIVEIRA, Marcos Alberto de, 2006)

 Kant define o sublime como o que é absolutamente grande: “sublime é aquilo em comparação com o qual tudo o mais é pequeno[1]” (Kant, 1993. p 115). Kant ainda acrescenta à definição, “sublime é o que somente pelo fato de poder também pensá-lo prova uma faculdade do ânimo que ultrapassa todo padrão de medida dos sentimentos[2]” (Kant, 1993. p 116). Com efeito, é na natureza que se encontram os objetos que despertam no sujeito o juízo do sublime, pois esta fornece exemplares fenomênicos incomensuráveis e o sublime é o que se apresenta neste absolutamente grande. Esse sublime, com efeito, reside na razão que regula o juízo estético frente a essa natureza.
Na perspectiva kantiana, o sublime é uma mescla de prazer e dor que se sente quando se está diante de um objeto de grande magnitude. Pode-se, no entanto, ter uma ideia de tal magnitude, mas não se consegue fazer igualar essa ideia com uma intuição sensorial imediata. Isto se deve ao fato de os objetos ditos sublimes ultrapassarem de longe a capacidade sensorial. Como podemos ler neste fragmento:
o que é absolutamente grande não é, porém, o objeto dos sentidos, e assim o uso que a faculdade do juízo naturalmente faz de certos objetos para o fim daquele (sentimento), com respeito ao qual, todavia, todo outro uso é pequeno. Por conseguinte, o que deve denominar-se sublime não é o objeto e sim a disposição de espírito através de uma certa representação que ocupa a faculdade de juízo reflexiva. (Kant, 1993. p 116) 
 
 Neste sentido, um exemplo de sublime, para Kant, seria uma cordilheira montanhosa e assimétrica. Pode-se ter ideia de uma cordilheira, mas não intuição sensorial dela como um todo. Sentimos dor pelo fato das nossas faculdades não conseguirem apreender o objeto, mas sentimos prazer também na consciência de que, como seres finitos, podermos assumir a posição de sujeitos que podem inferir juízos estéticos frente à incomensurável infinitude da natureza. Tomar consciência desta impotência e finitude engendra, efetivamente, um sentimento de dor, mas, finalmente, a alegria resulta da tomada de consciência da superioridade do intelecto em detrimento das inclinações sensoriais.

É importante perceber, no entanto, que o sublime em Kant esta ligado ao conflito de nossas faculdades. Por um lado, o belo emana a harmonia das faculdades - imaginação e entendimento - e pode ser tratado como uma espécie de equilíbrio dessas faculdades, engendrando calma e serenidade. Por outro lado, um espetáculo horrível que provoque angustia nunca é considerado belo. Entretanto, mesmo uma paisagem terrificante que tenha formas caóticas e desenhos assimétricos, um mar furioso regido pela inconstância de uma tempestade, um céu carregado de escuridão bradando ao som da ópera avernosa[3] dos trovões, rasgando o horizonte com cicatrizes em forma de relâmpagos, podem ser julgados sublimes.
Dentro da sistematização teórica do sentimento do sublime uma divisão conceitual faz-se necessária para se entender a noção de incomensurável grandeza por dois viéses, a saber, a separação entre o sublime matemático e o sublime dinâmico, ambos pressupõem campos distintos de manifestações fenomênicas na natureza. O sublime matemático, com efeito, convida à reflexão ao grandiosamente incomensurável, é o domínio do colossal que priva o sujeito ajuizador de qualquer intuição rumo a uma mensuração matemática do absolutamente grande. Como afirma Kant neste fragmento:

Ora, para a avaliação matemática das grandezas, na verdade não existe nenhum máximo (pois o poder dos números vai até o infinito); mas para a avaliação estética das grandezas certamente existe um máximo; e acerca deste digo que, se ele é ajuizado como medida absoluta, acima da qual não é subjetivamente (ao sujeito ajuizador) possível medida maior, então ele comporta a ideia de sublime e produz aquela comoção que nenhuma avaliação matemática das grandezas pode efetuar através de números (Kant, 1993. p 117).
     

            Assim sendo, a ideia de sublime matemático é o juízo do absolutamente grande, segundo o qual não se pode achar, subjetivamente, maior medida, pois o juízo estético desta vertente do sublime se depara com o tamanho atroz que comove o sujeito que julga frente à infinitude da natureza. O sublime matemático escapa à pretensão específica deste trabalho, preferimos, no entanto, nos ater ao sublime dinâmico: este conceito da estética formado numa das mais sistemáticas reflexões em meio a todo o arcabouço teórico do sistema kantiano.     
O sublime dinâmico, com efeito, é aquele em que o poder da natureza nos faz tomar consciência da nossa insignificância e finitude frente ao desencadeamento das forças naturais personificadas em fenômenos atrozes, como ciclones, terremotos, a fúria dos vulcões, a irascividade dos trovões entre outros que revelam poder e força descomunais. Podemos perceber nesta passagem de Kant, ao falar sobre esses colossais fenômenos da natureza que são denominados sublimes:

Eles tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com seu poder. Mas o seu espetáculo só se torna tanto mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que, somente, nos encontremos em segurança; e de bom grado denominamos estes objetos sublimes, porque eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza (Kant, 1993. p 118).        

Com efeito, o sublime dinâmico tem uma característica muito peculiar, pois “se a natureza deve ser julgada por nós dinamicamente sublime, então ela tem que ser representada como suscitando medo” (Kant, 1993. p 117). Mas esse medo deve ser sistematizado aqui como algo muito singular para não incorrer em equívocos de interpretação, ou seja, “aquilo que nos esforçamos por resistir é um mal e, se não consideramos nossa faculdade à altura dele, é um objeto de medo” (Kant, 1993. p 117).
No entanto, o medo e o terror entendidos aqui nada têm de sublimes em si mesmos, muito menos a submissão ou a melancolia provocada pelo sentimento de nossa impotência. Como afirma Kant nesta passagem:

Pode-se, porém, considerar um objeto como temível sem se temer diante dele, a saber: quando o ajuizamos imaginando simplesmente o caso em que porventura quiséssemos opor-lhe resistência e em tal caso toda resistência seria de longe vã. [...] Quem teme a si não pode absolutamente julgar sobre o sublime da natureza, [...] Aquele foge da contemplação de um objeto que lhe incute medo; e é impossível encontrar complacência em um terror que fosse tomado a sério. Por isso o agrado resultante da cessação de uma situação é contentamento. (Kant, 1993. p 118)       

 Assim sendo, julgar a natureza dinamicamente sublime nessas circunstâncias significa tomar consciência de que podemos julgá-la mesmo nessa condição. A razão entra neste ponto para regular o conflito entre a imaginação e o entendimento. Ela permite que desvele em nosso espírito uma elevação frente à natureza, no sentido de encararmos essa desproporção entre sua onipotência e nossa obvia finitude. Neste sentido, um homem que não se apavora, que não teme a si diante do perigo e que não cede a ele, mas ao mesmo tempo procede impetuosamente com inteira reflexão é objeto a ser admirado desde a casta mais baixa dos selvagens até os cumes mais altos da civilização. Como acentua Kant:

Até no estado maximamente civilizado prevalece este apreço superior pelo guerreiro; só que ainda exige, além disso, que ele ao mesmo tempo comprove possuir todas as virtudes da paz, mansidão, compaixão e mesmo o devido cuidado por sua própria pessoa; por que nisso é conhecida a invencibilidade de seu ânimo pelo perigo. (Kant, 1993. p 120).



Ao entrar nos domínios do ideal de guerreiro detentor das mais nobres virtudes que o levam a resistir aos perigos e ao medo, Kant se insere numa perspectiva surpreendente. Ele afirma haver, mesmo na guerra, um movimento do sublime, sob o pré-requisito necessário desta guerra ser regida “com ordem e com o sagrado respeito pelos direitos civis” (Kant, 1993. p 120). Para ele uma guerra nesses termos, tornaria a maneira de pensar do povo que a conduz “assim tanto mais sublime quanto mais numerosos eram os perigos a que ele estava exposto e sob os quais tenha podido afirmar-se valentemente” (Kant, 1993. p 120). É evidente que num exemplo como este, uma ideia de sublime na guerra, mesmo levando em conta as intempéries da mesma, só pode ser afirmado nos termos específicos acentuados por Kant. Termos esses que se assemelham mais ao ideal das guerras épicas antigas embebidas e guiadas por todo o heroísmo e a virtuosidade de guerreiros singulares como aqueles descritos nas guerras homéricas, do que aos excessos viscerais e pavorosos da barbárie horrenda das guerras no percurso corrente da história.
Encarar esta outra dimensão no exemplo kantiano, de certa forma, é debruçar-se sobre alguns objetos que também serviram de inspiração e matéria bruta para outro terreno da assimetria, neste caso, o horroroso, o visceral, o diabólico, o sinistro, o que-não-deveria-existir, a saber: os domínios do grotesco. O termo deriva do latim grotto (gruta), mas os vocábulos correspondentes em outras línguas são tomados do italiano. La grottesca e grottesco, cunhadas para designar determinadas espécies de ornamentação assimétrica encontrada em fins do século XV, como denomina Wolfgang Kayser em sua detalhada obra O Grotesco (1957), obra que tenta percorrer criticamente os desdobramentos do conceito ao longo da estética e da história da arte.
A gênese do conceito se deu depois da descoberta, por acaso, de grutas muito singulares soterradas em Roma. Foram escavados corredores e salões do antigo complexo palacial Domus Aurea, (antigo palácio romano construído pelo Imperador Nero entre 64 e 68 d.C.) Nesses espaços subterrâneos foram descobertas imagens, figuras, estátuas compostas de pessoas ou deidades metade humana e metade animal, essas expressões artísticas híbridas possuiam um estilo surpreendentemente ímpar e logo foram objetos de estudo e inspiração para outros grandes gênios da época como Rafael, Michelangelo e Leonardo da Vinci que executou desenhos neste tema intitulados: Cabeças Grotescas.


Com efeito, é Victor Hugo, em sua obra Do Grotesco e Do Sublime[4] que aborda o conceito do grotesco e coloca-o no centro de todas as suas reflexões. Victor Hugo transformou o grotesco em característica essencial e norteadora de toda arte pós-antiga. Para Hugo, um dos princípais aspectos do grotesco é a sua constituição embebida pelo disforme e pelo horroroso, sendo o cerne do conceito o monstruoso e o horripilante. Neste sentido, Hugo apresenta miríades de exemplos do assimétricose e do híbrido na arte desde a Antiguidade. Ele admite que os antigos conheceram o monstruoso-horroroso, e ilustra o fato com a hidra, as harpias, os cíclopes. Todavia, essa assimetria era sempre aflorada de forma tímida e tolerada à margem da visão classicista de arte, procurando sempre amenizá-la:  “Certamente, as eumênides gregas são bem menos horríveis, e, como consequência, bem menos verdadeiras que as bruxas de Macbeth”. (Hugo, 2004) 

Mas, para Victor Hugo, os aspectos do grotesco não se encerram no monstruoso-horroroso. Ele encontra uma linha tenue nas entrelinhas do seu conceito e aproxima-o ao feio que, frente ao império do belo, teria uma gama infinitesimal de possibilidades. Como acentua Hugo neste fragmento:

O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar humanamente, não é senão a forma considerada na sua mais simples relação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais íntima harmonia com nossa organização. [...] O que chamamos feio, ao contrario, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos. (Hugo, 2004 p. 36)




            Hugo, engendra um exame muito além do grotesco como um todo e o revela como função em uma totalidade maior. Torna-o pólo de uma tensão, em que o sublime é contituído em pólo oposto ao grotesco. Sublime é aqui entendido por Hugo como aquilo que direciona o olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano. E é somente nessa relação que o grotesco desvela toda sua profundidade. Hugo não afirma o grotesco como característica de toda arte moderna, nem engendra uma relação dicotômica e intocável entre este e o sublime, mas que o grotesco se desdobra como “meio de contraste”, neste sentido, deve haver uma união harmoniosa entre ambos, a saber, entre o sublime e o grotesco. Pois, assim como o sublime – à diferença de belo – que dirige o nosso olhar para um mundo de elevação e coloca-nos a perceber o sobre-humano, de uma forma ou de outra, ele nos abre para o ridículo-disforme e o monstruoso-horrível do grotesco um mundo abismal, noturno e desumano.


            Assim sendo, podemos achar uma linha tenue entre os conceitos: sublime e grotesco. Conceitos que fogem ao império apolíneo do belo e buscam, de alguma forma, validar como ponto de investigação da filosofia também o assimétrico. Como vimos anteriormente o sublime kantiano mesmo amarrado às bases fortes do seu sistema, também fornece campo fertil para a análise do grotesco. A teoria e inclinação de Hugo, por sua vez, se mostra, de certa forma, como uma resistência irascível ao classicismo, e encontra sua harmonia ao perceber o quanto é caro o sublime dentro de sua teoria, sobretudo como ponto de contraste entre este e o grotesco. Este ponto de contraste inspirou, decisivamente, várias gerações de pensadores e artistas que buscavam matéria-prima intelectual e imagética nos dominíos da assimetria.              
                   
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1993. 

OLIVEIRA, Marcos Alberto de. O problema da possibilidade dos juízos reflexionantes estéticos no quadro da filosofia kantiana da razão pura. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 9, n.16, jul./dez., 2006, p. 441-466.

HUGO, Vitor. Do Sublime e do Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1988.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.

JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo, RS : Unisinos, 1999.


[1] Itálico do próprio autor.
[2] Itálico do próprio autor.
[3] Termo derivado do latim (avernale), referindo-se ao averno; infernal; avernoso. 
[4] Obra originalmente escrita para o prefácio de Cromwell (1827), um escrito programático sobre o romantismo francês.

Um comentário:

  1. Oi, gostei de sua postagem, porém senti falta das legendas nas imagens. É importante conhecermos os autores destas incríveis, e grotescas, obras.

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